A verdade como remédio: PL 399 e Cannabis
Alessandra Nascimento S. F. Mourão e Maria José Delgado Fagundes*
15 de abril de 2021 | 11h00
“Seja fiel à verdade, eu diria, e o resultado será espantosamente interessante.” Assim Virginia Woolf, em 1928, nos confortava para os predicados auspiciosos de nos agarrarmos aos fatos como eles são. A obra “Um Quarto Só Seu”, editora Bazar do Tempo, tradução Julia Romeu, pode ser considerada atual.
Quase um século depois, nos defrontamos com os desafios de separar o joio do trigo no oceano das “fake news”. Algumas são anônimas e sequer conseguimos identificar o espírito de Leviatã que as pariu. Outras trazem a assinatura do falsário, que não se envergonha de propagar o equivocado, o descolado da verdade, a simples mentira.
Difícil afirmar que exista “fake news” desprovida de poder de dano. Em alguns casos, porém, é imperativo combater a reprovável iniciativa. Isso porque o seu poder de destruição é alarmante e de óbvia percepção.
É preciso refletir sobre a questão do Substitutivo do Projeto de Lei 399/2015, em trâmite no Congresso Nacional. Mal anunciou a imprensa que ele seria colocado em discussão no próximo dia 20 de abril e já circulam nas redes sociais vídeos afirmando taxativamente que o projeto tem por objetivo a liberação das drogas. Não bastasse essa falácia, que a seguir se demonstrará, o desapego à verdade causa sim danos aos pacientes e às atividades econômicas lícitas. Sem meias palavras: o vídeo é mentiroso.
O Substitutivo do PL 399 não propõe nem viabiliza o uso de uma planta, a Cannabis, para fins recreativos ou uso adulto como preferem alguns.
O tema ali tratado é outro: uso terapêutico para seres humanos e animais, além de uso industrial para as espécies da planta que carecem de funções psicoativas. O deputado Luciano Ducci tem trabalhado com afinco para combater os desvios interpretativos das normas contidas no projeto de lei de sua relatoria.
O objetivo desse regramento ainda em gestação é regulamentar algo que se tornou realidade em mais de 40 países: o cultivo, a pesquisa e a produção de medicamentos, produtos com fins terapêuticos e produtos industrializados que não tenham destinação “recreativa” e que tenham como insumo a Cannabis.
Como o conhecimento protege a todos de manipulação indevida, cabe esclarecer que no projeto de lei há regras rigorosas para o cultivo, que estará condicionado, conforme o caso, à autorização do Ministério da Agricultura e da ANVISA. Somente poderá ser concedida a empresas e estas serão submetidas à fiscalização dos órgãos competentes.
O cânhamo industrial também é objeto do projeto de lei. Variação da Cannabis de teor ínfimo e, por vezes, quase nulo de substância psicotrópica pode dar impulso à agricultura e indústrias variadas, como da construção civil e têxtil. No setor químico, é uma alternativa mais sustentável, inclusive, em relação aos produtos derivados do petróleo.
Conforme pesquisado por Paulo Jordão, doutor em Administração, professor da Universidade Federal do Piauí, sócio da Cannapi, o Brasil consumiu U$ 6,78 milhões de Cannabis Medicinal entre 2015 e 2020, o que demonstra que o mercado medicinal cresceu pelo menos de U$ 94 mil em 2015 para U$ 2,98 milhões em 2020. Em 2016, o consumo de Cannabis Medicinal no Brasil foi de U$ 380.500
Se contra fatos não há argumentos, os dados comprovam que não haverá retrocesso para o uso medicinal da Cannabis.
Ao Poder Legislativo cabe a tarefa e a obrigação de atualizar a legislação vigente, modernizando-a para atender as demandas sociais, que garantam a dignidade da pessoa humana e a preservação do maior bem protegido pela Constituição de 1988, a proteção a vida, e nesse caso são de milhões de brasileiros, que só obtiveram resultados terapêuticos para suas doenças refratárias a outros medicamentos, na Cannabis de uso medicinal.
Vale lembrar: a política de saúde recomenda que o processo de saúde/doença seja visto de maneira integral, cuja a atenção não deve se restringir aos cuidados físicos e biológico, mas especialmente no reconhecimento dos contextos sociais do indivíduo e de sua comunidade.
Historicamente, há um déficit no orçamento da saúde. Potencialmente, o país terá a oportunidade de amenizar o atual cenário que só se complicou nesse momento pandêmico. Então por que dificultar o andamento legislativo?
Tudo isso acontece em um país republicano, onde abraçar opiniões divergentes é absolutamente legítimo, mas distorcer os fatos não é. É difícil entender a motivação para emperrar a aceleração do desenvolvimento do país e a garantia do direito à saúde para milhões de brasileiros.
Verdade é o melhor remédio e no caso do PL 399 com certeza ela está com aqueles que estão promovendo o avanço que a sociedade espera e merece.
*Alessandra Nascimento S. F. Mourão, professora da Escola de Direito SP da FGV e sócia-fundadora da Nascimento e Mourão Advogados (São Paulo)
*Maria José Delgado Fagundes, advogada, especialista em Saúde Pública, Direito Privado e Bioética, fundadora da MJDFAGUNDES- consultoria especializada em Saúde
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