Resolução que restringe uso medicinal do canabidiol começa a impactar Judiciário.
Na prática, tratamentos de doenças como Parkinson e Alzheimer ficam comprometidos
Por Laura Ignacio — São Paulo
Uma recente resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que restringe o uso medicinal do canabidiol, começa a levar ao Judiciário cidadãos que usam a substância em tratamentos de saúde. A Resolução nº 2.324/22 veda ao médico prescrever canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista na norma.
Na prática, com isso, tratamentos de doenças como Parkinson e Alzheimer ficam comprometidos. Conforme a nova resolução, “está autorizada a prescrição do canabidiol como terapêutica médica, se indicadas para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa”.
O médico que desobedece regra do CFM fica sujeito à punição, que vai de uma advertência à suspensão da atividade profissional.
O advogado Márcio Casado e seus três irmãos afirmam que vão entrar na Justiça Federal com uma ação popular, com pedido de liminar (urgência). Vão requerer que os médicos possam deliberar, sem punição, a manutenção da recomendação do tratamento com o uso da substância a pessoas, de qualquer idade, que sofram de moléstias que não constam na resolução do CFM.
Como precedentes vão anexar dois julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo que indicam que o uso da substância é válido e eficaz (Agravos de Instrumento nº 2153448-90.2022.8.26.0000 e 3002860-54.2022.8.26.0000 ). A fundamentação legal é farta: violação do direito à saúde e ao livre exercício da profissão e dos princípios constitucionais da razoabilidade e da dignidade humana. “Porque após o uso ininterrupto, com resultados positivos, um corte repentino do uso da substância pode reverter o quadro”, diz Casado.
Para o advogado, a causa é também pessoal. Seu pai, de 74 anos, tem Parkinson desde os 47, e de cinco anos para cá, com o uso do canadibiol, voltou a ter longos períodos de lucidez, com redução da agressividade decorrente da demência. “Pagamos pelo medicamento dele, a dificuldade agora seria comprar porque o neurologista não pode receitar, por medo de sanção”, diz. “Sofre meu pai e sofre a família, que cuida dele”.
O Ministério Público já foi envolvido na discussão. “O Ministério Público Federal de Goiás já solicitou ao CFM, à Anvisa e ao Ministério da Saúde para responderam a questionamentos sobre a nova resolução no prazo de 15 dias, o que deverá acontecer até final deste mês”, diz a advogada Sueli Freitas, sócia do LO Baptista.
A resolução ainda impacta o mercado farmacêutico. A advogada Alessandra Mourão, sócia-fundadora da Nascimento e Mourão Advogados e presidente do comitê de ética da Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides (BRCann), que reúne ao menos 18 empresas do Brasil, aponta que o CFM regulamenta a atividade médica, mas é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autoriza quais produtos podem ser usados.
“Já há decisões judiciais que, por causa da nova resolução, prejudicam pacientes que precisam do tratamento com canabidiol”, afirma a advogada.
Em um dos casos, uma decisão da 10ª Vara da Comarca de Porto Alegre (RS) pede esclarecimentos se a prescrição médica está de acordo com os critérios da nova resolução a uma pessoa que entrou com ação na Justiça para receber o canabidiol pelo SUS. Em outro caso, por causa da nova norma, decisão do Juizado Especial de Guarulhos (SP) suspendeu liminar que já determinava o fornecimento pelo SUS (processos nº 5133029-33.2022.8.21.0001 e 5007849-20.2022.4.03.6119 ).
Procurado pelo Valor, o CFM não respondeu. Mas a entidade divulgou em seu site que abrirá consulta pública a toda a população para receber contribuições com o objetivo de atualizar a Resolução nº 2.324/2022. De 24 de outubro a 23 de dezembro de 2022 poderão ser enviadas sugestões, por meio de uma plataforma eletrônica.
“Seria de bom tamanho que, enquanto a consulta estiver em andamento, suspendam os efeitos da resolução”, afirma Alessandra. “Se não, há risco de mais juízes voltarem atrás, mais ações abarrotarem a Justiça e de médicos em processos disciplinares, o que macula a ficha profissional”, afirma a advogada.
A Anvisa já autorizou a comercialização de 20 produtos de cannabis no país. Por nota, o órgão diz que autoriza apenas a entrada desses produtos, de acordo com o previsto na RDC nº 327/2019. Essa norma deixa claro que deve ser garantida a qualidade e segurança dos produtos e é referência para outros países, segundo a Anvisa. “A agência recebeu ofício do CFM e responderá em breve com a contextualização técnica e regulatória para a edição da RDC 327/2019”.
Mesmo a classe médica está dividida. Para a médica Ailane Araújo, fundadora e presidente do Núcleo de Desenvolvimento em Medicina Canabinoide e Integrativa (NDMCI), “a Resolução nº 2.324/2022 do CFM é restritiva, contraditória e não promove avanços”.
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