A venda de veículos desenvolvidos para pessoas com deficiência e o Direito do Consumidor
Wanessa Magnusson*
27 de agosto de 2020 | 03h30
Várias são as versões de veículos criadas pelas montadoras para atrair o público de pessoas com deficiência (PcD). Elas oferecem bons pacotes de acessório por R$70.000,00, valor que hoje é o teto legal para concessão de isenção de impostos que incidem sobre os veículos.
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A isenção fiscal, concedida para PcDs e seus responsáveis, é benefício criado pelo Estado com o objetivo de facilitar a aquisição de veículos automotores por um público que é especialmente dependente desses bens de consumo.
A fim de atender esse público, as montadoras criam pacotes de itens e acessórios (versões) que cabem no preço que autoriza a isenção fiscal. Para não exceder esse preço, às vezes é preciso conceder descontos a determinados itens e acessórios que compõem a versão para PcD que, quando vendidos em outras versões, têm preço superior.
Apesar de serem criadas para atender o público PcD, essas versões de veículos também são vendidas para o público em geral. Ao comprar um veículo, o consumidor não PcD pode escolher entre todas as versões disponíveis, inclusive a versão criada para atender o público PcD.
Assim, o consumidor não PcD pode ter disponível para aquisição o veículo “x” numa versão em que o câmbio automático custa R$5.000,00 (a versão criada para PcDs) e o mesmo veículo “x” noutras versões em que este mesmo câmbio automático custa R$7.500,00 (as demais versões)
A prática de preços distintos para o mesmo item (câmbio automático) do mesmo modelo de veículo pode, a depender das circunstâncias, ser ou não ser considerada abusiva e ilegal.
Na relação de consumo, o consumidor é considerado o ator mais vulnerável. A vulnerabilidade do consumidor decorre de fatores de ordem técnica (detenção, pelo fornecedor, do conhecimento e do controle dos meios e processos produtivos), de ordem socioeconômica (o consumidor detém um poder econômico menor do que o fornecedor) e de ordem jurídica (o consumidor, não raro, desconhece seus direitos).
Por ser vulnerável, a lei garante ao consumidor condições iguais nas contratações. Assim, a coletividade de indivíduos consumidores não fica à mercê de tratamentos randomicamente distintos por parte dos fornecedores, na praxe comercial.
O direito à igualdade nas contratações (artigo 6º, II do CDC) visa assegurar o equilíbrio na contratação, considerados seus atores diretos (consumidor e fornecedor) e a igualdade de possibilidades negociais, com tratamento isonômico.
Mesmo havendo garantia legal do direito à igualdade nas contratações, a prática de preços distintos para o mesmo item não será considerada abusiva ou ilegal se o consumidor que está adquirindo o veículo for PcD. Dentro do grupo de consumidores existe um subgrupo de indivíduos que, por razões diversas, encontram-se em condições de ainda mais fragilidade do que aquelas condições em que estão inseridos os consumidores simplesmente vulneráveis. São os consumidores hipervulneráveis.
Os consumidores PcD são considerados hipervulneráveis por se encontrarem em situação de vulnerabilidade potencializada por circunstâncias pessoais ostensivas e conhecidas do fornecedor. As circunstâncias particulares dos consumidores PcD os colocam em situação de maior fragilidade. Em função de características pessoais, estes consumidores têm mais dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e até mesmo a educação (o que potencializa a vulnerabilidade econômica e informacional), enfrentam problemas de saúde que oneram o custo de vida e dependem mais de meios de transporte motorizados.
É evidente que o grupo de consumidores PcD é sensivelmente distinto do grupo de consumidores em geral. Por tal razão, permite-se que os consumidores PcD gozem de uma condição de contratação mais benéfica, traduzida em nosso exemplo no desconto do preço do câmbio automático.
As mesmas razões que justificam o tratamento diferenciado dispensado pelo Estado (a isenção tributária), justificam o tratamento diferenciado dispensado pelo fornecedor privado. A concessão de desconto se justifica porque a contratação está sendo feita por um subgrupo de consumidores que reúnem características especiais, que justificam o tratamento não isonômico.
A prática de preços distintos, nessa hipótese, não pode ser considerada discriminação injustificada ou afronta ao direito de igualdade nas contrações. Ao contrário, traduz-se em tratamento desigual de consumidores que são desiguais, e, portanto, em verdadeira observância ao princípio da isonomia.
O mesmo não ocorre com os consumidores em geral. Como não há diferenças relevantes entre os indivíduos que compõem o grupo de consumidores em geral (não PcD, simplesmente vulneráveis), não há justificativa para a dispensa de tratamentos não isonômicos para os indivíduos deste grupo.
Assim, oferecer ao consumidor em geral “A” o câmbio automático de um veículo (da linha desenvolvida para atender o consumidor PcD) pelo preço de R$5.000,00 e ao consumidor em geral “B” o mesmo câmbio automático (nas demais linhas do veículo), por preço superior pode ser considerado conduta discriminatória, pois não há fatores objetivos que justifiquem a prática de preços distintos do mesmo câmbio automático/veículo para indivíduos que compõem o mesmo grupo.
A variação de preços, nesta hipótese, caracteriza afronta imediata ao direito de igualdade nas contratações, garantido pelo artigo 6º, II do CDC, e mediata ao princípio constitucional da Isonomia.
Cabe às montadoras/concessionárias criar alternativas comerciais que mitiguem as diferenças negociais de contratação nas vendas, para consumidores em geral (não PcD), das versões de veículos desenvolvidas para PcDs, evitando, assim, autuações pelos órgãos de defesa do Consumidor e questionamentos judiciais de suas práticas comerciais.
*Wanessa Magnusson, sócia da Nascimento e Mourão Advogados na área de consumo de massa