Um rótulo diferente para cada Estado? O que pode estar por trás do julgamento do Supremo Tribunal Federal
João Emmanuel Cordeiro Lima*
16 de outubro de 2020 | 07h35
No dia 9.10, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.619, que questionava uma lei editada pelo estado de São Paulo fixando requisitos específicos para a rotulagem de produtos destinados ao consumo humano ou animal, ou utilizados na agricultura, que contenham organismos transgênicos e sejam comercializados em seu território. A votação, que havia ficado empatada em sessão realizada em setembro, com 5 ministros entendendo que a lei era válida e 5 votando no sentido de que ela violava a Constituição Federal, foi desempatada pelo Ministro Celso de Mello, que acompanhou a relatora e formou maioria para reconhecer a sua constitucionalidade.
De acordo com a lei objeto de questionamento, os produtos contendo organismo transgênico em proporção igual ou superior ao limite de 1% deveriam receber rotulagem específica com determinadas informações voltadas ao consumidor. Por outro lado, o Decreto Federal nº 4.680/2003 estabelece que essa rotulagem somente é necessária apenas quando esse percentual for acima de 1%. Assim, há uma divergência sutil de critérios entre a legislação federal e a estadual, o que motivou o ajuizamento da ação direta pela Confederação Nacional da Indústria, em 2011, defendendo que houve violação a dispositivos constitucionais que versam sobre a distribuição de competência legislativa pela lei paulista.
Quem olha essa discussão de fora imagina que se trata de um julgado que só interessa aos fabricantes ou comerciantes de produtos com organismos geneticamente modificados, pois é esse o foco da lei objeto de questionamento. Mas o que está em jogo nesse debate pode ser algo muito maior. É que, para decidir o caso, o Supremo teve que dizer novamente se um estado pode fixar requisitos diversos de um padrão estabelecido nacionalmente para a rotulagem de produtos comercializados em seu território. A resposta positiva a essa questão significa que um produto fabricado em São Paulo pode, em tese, ser obrigado a ter até 27 rótulos diferentes, caso cada estado e o Distrito Federal decidam fixar critérios próprios.
No caso em análise, como visto, a lei paulista definiu uma regra de rotulagem específica para produtos com transgênicos. Curiosamente, a decisão tende a não ter maiores repercussões práticas justamente para esses produtos, uma vez que, atualmente, apesar de existir um padrão nacional, há decisões judiciais em vigor determinado, com base em outros argumentos, que a rotulagem seja feita em qualquer caso, independentemente do percentual de transgênico presente no produto.
Mas isso não retira a importância do julgamento. Isso porque, se o Supremo passar a entender, como fez neste caso, que as leis estaduais sobre rotulagem podem divergir do parâmetro nacional, outras poderão ser editadas sobre esse tema (transgênicos), ou acerca de outros aspectos, impactando diretamente o fluxo de mercadorias no Brasil. Aliás, um bom exemplo desse movimento já pode ser visto em leis estaduais e municipais (isso mesmo, municipais!), que tratam sobre a gestão de resíduos sólidos eletroeletrônicos e exigem que o produto vendido em determinado território possua informações específicas em seu rótulo (ex. orientação sobre postos de entrega).
Apesar de poderem legislar sobre normas gerais quando não há lei federal, ou de suplementá-las quando existentes, em matérias de competência concorrente, é certo que os estados não podem fazê-lo de forma ilimitada. Um dos limites é justamente o alcance subjetivo da norma, que não pode ir além da unidade federativa que a editar. Contudo, ao estipular obrigações de rotulagem que conflitam com o padrão nacional e atingem fabricantes localizados em outro ente federativo, que terão que adaptar seus rótulos para vender um produto no território do ente elaborador da regra, essas leis aparentemente extrapolam esse limite e invadem a competência privativa da União para legislar sobre comércio interestadual, pois afetam o fluxo de mercadorias em território nacional. São, portanto, a nosso ver, inconstitucionais, e o mesmo vale para leis municipais que caminhem nesse sentido, ainda que sob o pretexto de estarem tratando de assuntos de interesso local, como ocorre nas questões atinentes à gestão de resíduos.
Até o presente momento, o Supremo havia se debruçado sobre questões semelhantes em pelo menos 5 vezes: ADIs 910 (2003), 2.656 (2003), 3.645 (2006) e 2.832 (2008) e ADI 750(2017). Em quatro delas, incluindo o julgado até então mais recente, de 2017, quando já tinha a composição atual, entendeu que essas leis seriam inconstitucionais, preservando o padrão nacional. A nova decisão alterou esse quadro ao permitir que a lei estadual questionada fixe padrões próprios. Como o placar foi apertado (6 x 5) e o Ministro Celso de Mello, que votou com a corrente vitoriosa, se aposentará, resta saber se o tribunal manterá sua antiga jurisprudência sobre o tema, ou se seguirá este novo rumo, permitindo a criação de múltiplos padrões de rotulagem pelos estados, ou até mesmo por municípios, o que poderá impactar significativamente o fluxo de mercadorias em território nacional.
* João Emmanuel Cordeiro Lima, Sócio do Nascimento e Mourão Advogados e Professor de Direito Ambiental e Regulatório