Reportagem do LexLatin traz comentário do sócio sênior João Emmanuel Cordeiro de Lima sobre o novo marco legal da biodiversidade.
As questões jurídicas que envolvem a discussão da biodiversidade no Brasil
Especialistas na área analisam as mudanças mais recentes, falam de biopirataria e sobre o Protocolo de Nagoia, que precisa ser ratificado pelo governo brasileiro.
Profissionais do direito estão sendo chamados a discutir nos últimos anos um assunto importante não só para os brasileiros, mas também para o planeta: a biodiversidade. Dentro da prática jurídica, segundo os especialistas, as questões mais importantes se relacionam com a implementação, execução e fiscalização dos mecanismos de proteção da biodiversidade estabelecidos pelas leis nacionais.
O desafio se inicia com a conscientização a respeito da relevância da conservação da biodiversidade, em conciliação com as estratégias para o desenvolvimento econômico e tecnológico. Hoje existe uma preocupação em relação à identificação das situações concretas sobre as quais se aplicam as leis de proteção da biodiversidade, muitas vezes em razão do desconhecimento ou falta de precisão da extensão das normas.
O principal motivo dessa preocupação tem relação com o tamanho da importância do país para a biodiversidade do planeta. Segundo alguns dos principais levantamentos feitos pelos cientistas em todo o mundo, estão aqui entre 15% e 20% de todas as espécies da flora e fauna do planeta.
Muitas das espécies da flora brasileira são de importância econômica mundial, como o abacaxi, o amendoim, a castanha do Brasil (ou do Pará), a mandioca, o caju e a carnaúba. O país também possui uma importante sociobiodiversidade, com mais de 200 povos indígenas e várias comunidades – como quilombolas, caiçaras e seringueiros – que reúnem um rico acervo de conhecimentos tradicionais sobre a conservação da biodiversidade.
Segundo advogados especializados outro ponto importante é o estímulo ao uso sustentável dos recursos genéticos com o fim de proporcionar o aumento da biodiversidade e o estabelecimento de condições mais claras para se obter acesso aos conhecimentos tradicionais sobre os recursos.
Isso ajuda, por exemplo, a combater a biopirataria, uma prática que tem acontecido com frequência nos últimos anos. Um dos exemplos mais conhecidos aconteceu com o açaí. A fruta típica da Amazônia ficou registrada no Japão como propriedade da empresa K.K. Eyela Corporation entre 2003 e 2007, quando o registro foi cancelado pelo Japan Patent Office, escritório de registro de marcas do Japão. Além do açaí, outros exemplos famosos foram do cupuaçu e da rapadura, que já foram registrados de forma irregular como marcas fora do país.
“Fornecer instrução, autonomia financeira e participação ativa das comunidades locais das áreas de concentração de vasta biodiversidade no planejamento é um importante instrumento de combate à biopirataria, porque tais comunidades podem se tornar importante instrumento de fiscalização”, analisa Nairane Rabelo, sócia da área ambiental do Serur Advogados.
“A desburocratização da pesquisa também deve ser estimulada, assim como a participação das comunidades nela. Sem ela não há conhecimento sobre as funcionalidades dos recursos naturais, o que também dificulta o controle e a fiscalização do acesso ilegal”, afirma Rabelo.
A Constituição brasileira, que garante o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, estabeleceu no artigo 225 a obrigatoriedade de preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético brasileiro pelo Poder Público.
A legislação nacional conta ainda com outras normas importantes como a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), Lei de Proteção de Cultivares (Lei nº 9.456/1997), Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), Lei de Biossegurança e Biotecnologia (Lei nº 11.105/2005) e a Lei de Biodiversidade e Acesso ao Patrimônio Genético (Lei nº 13.123/2015).
Essa última é conhecida como novo marco legal da biodiversidade e, segundo especialistas da área, simplificou as regras de pesquisa e desenvolvimento com espécies da biodiversidade brasileira – atividades que a lei chama tecnicamente de acesso ao patrimônio genético e/ou ao conhecimento tradicional associado.
“Agora o interessado pode iniciar imediatamente sua pesquisa sem aguardar qualquer autorização, devendo cadastrá-la e notificar o produto que desenvolver, se for o caso, apenas depois que a pesquisa avançar”, explica João Emmanuel Cordeiro de Lima, sócio do Nascimento & Mourão Advogados.
Ele explica que essa nova realidade tende a atrair empresas que haviam abandonado pesquisas com biodiversidade brasileira. “Há um consenso entre os especialistas de que a biodiversidade brasileira tem enorme potencial para o desenvolvimento de produtos de interesse em setores diversos como cosmético, farmacêutico, químico, energia, alimentação e muitos outros”, diz o advogado.
A Lei da Biodiversidade instituiu ainda o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGen, órgão que implementa políticas de gestão do patrimônio genético brasileiro. A efetiva constituição do CGen e a regulamentação da Lei da Biodiversidade ocorreram com a edição do Decreto nº 8.772, de 11 de maio de 2018.
A princípio esse conjunto de normas deveria assegurar mecanismos contra a exploração ilegal do meio ambiente, propriedade intelectual e recursos da biodiversidade. Mas nem sempre isso acontece.
“Não raras vezes a burocracia inerente à administração pública torna o exercício da fiscalização excessivamente moroso, além da demora na própria efetivação de políticas concretas para adoção da legislação”, explicam Eduardo Ferreira e Victoria Weber, sócio e advogada da área de direito ambiental do Machado Meyer.
“Há discussões a respeito da eficácia desses mecanismos para reprimir a biopirataria no Brasil, na medida em que as penalidades previstas em nossa legislação são havidas como brandas e, portanto, desproporcionais aos agravos e lucros decorrentes da prática ilegal”, afirma Antônio Monteiro, sócio de Ambiental de Pinheiro Neto Advogados.
Para ele e também na análise de Nicole Recchi Aun, associada de Life Sciences do escritório, um dos mecanismos que podem ajudar a proteger a biodiversidade brasileira é a ratificação do Protocolo de Nagoia.
O tratado internacional estabelece regras para a divisão entre os países dos benefícios, monetários e não monetários, resultantes de pesquisas genéticas com a biodiversidade e utilização do conhecimento tradicional, discutindo pagamento de royalties, criação de joint ventures, pesquisa, compartilhamento de resultados, transferência de tecnologias e capacitação. E determina que o acesso de um país a recursos genéticos de outro dependerá de consentimento prévio e regras justas e não arbitrárias.
Como é um tratado internacional, a entrada em vigor no Brasil dependia de aprovação do Congresso Nacional e ainda precisa da promulgação de um decreto presidencial. O texto do protocolo foi debatido e aprovado na Câmara dos Deputados em julho. No Senado, o projeto (PDL 324/2020) foi aprovado em 6 de agosto.
“Espera-se reforçar um sistema global de controle, consentimento e repartição dos benefícios resultantes do acesso, pesquisa e utilização de recursos genéticos. Ao reconhecer a soberania dos países para proteção de seus recursos genéticos e oferecer maior proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, o protocolo ajuda no combate à biopirataria”, afirmam Antônio Monteiro e Nicole Recchi Aun.
“Ser signatário do Protocolo de Nagoia vai permitir influenciar as negociações para que as normas internacionais se aproximem da nossa lei para efetivar a repartição de benefícios pela utilização dos recursos genéticos por outros países através de um mecanismo internacional multilateral de repartição de benefícios. Da mesma forma, permitirá discutir diversas regras a serem implementadas, como a utilização de sequências digitais de recursos genéticos”, explica Nairane Rabelo.
“A ideia por trás desse objetivo é que ele sirva como gatilho para fomentar a conservação e uso sustentável da biodiversidade, viabilizando a transferência de benefícios – que podem ser monetários, como a repartição de lucros, ou não monetários, como a transferência de tecnologia – entre usuários de recursos genéticos e conhecimentos (uma empresa farmacêutica, por exemplo) e aqueles que os proveem, e que estão mais diretamente ligados à sua conservação”, afirma Joao Emmanuel Cordeiro de Lima.
Para os especialistas em meio ambiente ouvidos por LexLatin, mesmo com uma das legislações mais importantes do mundo na área da biodiversidade, falta de um plano devidamente estruturado sobre o tema. Outra questão, segundo os advogados, é a falta de vontade política aliada à inabilidade de reunir proteção ambiental e sustentabilidade com pesquisa, inclusão das comunidades locais e exploração comercial.
“Focar tão somente na exploração comercial é estimular a biopirataria e relegar para gerações futuras o enfrentamento da interdependência do ecossistema e da finitude dos recursos naturais”, analisa Nairane Rabelo.