Locação de unidade autônoma e a proibição condominial
Locação por temporada, como nas plataformas digitais, existe muito antes das recentes inovações tecnológicas.
Toda novidade gera surpresa e, em algum momento, questionamento de suas consequências no mundo jurídico. Não é diferente com as locações por meio de plataformas digitais.
Tem sido objeto de inúmeras demandas judiciais o conflito estabelecido entre o proprietário de unidade autônoma, querendo fazer valer o direito de gozo de sua propriedade ao disponibilizar seu imóvel para locações de curto período intermediadas por plataformas digitais, e o condomínio, que pretende seja observado seu direito de impor limites a este gozo, proibindo o condômino de concretizar esse tipo de negócio.
No STJ, em 2021, tivemos dois grandes julgamentos sobre o tema: o RESP 1.819.075/RS, julgado em abril, e o RESP 1.884.483/PR, do final de novembro. Em apertada síntese, o primeiro desses julgados resultou da vontade da maioria dos ministros, ficando vencido e eminente Luis Felipe Salomão, e fixou o entendimento de que a oferta de imóvel (ou cômodos dele) à utilização de usuários mediante remuneração, com ou não serviços conjugados, caracterizaria contrato atípico de hospedagem, regulado pela Lei 11.771/08, e seria passível de proibição pelo condomínio.
O RESP 1.884.483/PR, por sua vez, fixou, por unanimidade, que a natureza da ocupação, se residencial ou residencial, deveria ser observada caso a caso, considerando, inclusive a prestação acessória de serviços.
Ambos os julgados, entretanto, consentiram que a assembleia condominial tem competência para limitar o gozo da propriedade do proprietário de unidade autônoma.
O direito de propriedade possui matriz constitucional, estando incluído como direito fundamental previsto no artigo 5º (inciso XXII). Mas não só, também é constitucional o uso da propriedade com o viés da livre iniciativa (art. 170, II). Também o Código Civil, em seu artigo 1.228[1], prevê que o proprietário tem a faculdade de usar e gozar da coisa que lhe pertence, sendo que gozar, aqui diferenciado de usar, tem o significado de explorar o bem economicamente, isto é, tirar-lhe frutos.
Sob todos os aspectos, o exercício da propriedade se limita à observância de sua função social. Especificamente em relação aos imóveis urbanos, onde se localizam a maioria dos condomínios afetos à presente análise, ainda que os julgadores sejam tentados a divagar e construir conceitos sobre a função social da propriedade, é preciso lembrar regra de observância explícita no artigo 182, § 2º, da Lei Maior, que é claro e preciso ao prever:
Art. 182. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Portanto, se o município, ente público competente para a elaboração e observância de seu plano diretor, não se insurgir ao exercício dos direitos legais do proprietário de imóvel urbano, sua restrição só poderá encontrar sustentação se evidenciado o abuso ao direito de propriedade e a ameaça ou o prejuízo a direito de terceiros[2] ou se houver violação ao direito de vizinhança expresso no art. 1.277 do Código Civil.
Entendemos, com a devida vênia a quem pensa diferente, que o prejuízo capaz de limitar o exercício de tão nobre direito (propriedade) não pode ser presumido. Não há razão objetiva para supor que locatários cadastrados, identificados, maiores capazes e sujeitos à observância das regras condominiais, causarão algum abalo extraordinário à vida dos demais moradores. É evidente que isto pode ocorrer, por parte de inquilinos e proprietários, diga-se de passagem, mas é circunstancial e não se pode admitir a presunção em desfavor do gozo do proprietário de unidade autônoma.
E não estamos sós neste raciocínio. O voto divergente – e acertado, em nossa opinião – do ministro Luis Felipe Salomão no RESP nº 1.819.075/RS consigna a impossibilidade de o condomínio restringir o direito de propriedade consistente na disponibilização de unidade condominial para locações de curtos períodos, para usuários diversos de plataformas digitais, como se vê:
Tampouco há prova alguma ou elemento indiciário de quebra ou vulneração de segurança quanto ao convívio no condomínio. Ao revés, há mesmo uma ideia de que a locação realizada por tal método (plataforma virtual) é até mais segura – tanto para o locador quanto para a coletividade que com o locatário convive, porquanto fica o registro de toda a transação financeira e os dados pessoais deste e de todos os que vão permanecer no imóvel, inclusive com históricos de utilização do sistema. (grifamos)
A locação por temporada, nos moldes dos contratos firmados nas plataformas digitais, existe muito antes da existência das recentes inovações tecnológicas. É certo que as plataformas provocaram facilidades nos relacionamentos e o aquecimento deste negócio, que frisamos, é legítimo ao proprietário. O negócio per se, entretanto, não é novo. Nova é sua submissão a uma onda mundial chamada de economia de compartilhamento que representa o melhor aproveitamento das oportunidades de negócio já existentes em benefício dos contratantes e de toda a sociedade pelo incremento de produto interno bruto que daí deriva.
Com relação à natureza da locação contratada entre o proprietário de unidade autônoma e o usuário de plataforma digital entendemos que, como regra, não há qualquer violação ou abuso de direito ensejador da limitação do direito de propriedade. O artigo 48[3] da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91), que versa sobre a locação por temporada, molda-se adequadamente à grande maioria das contratações de utilização de imóveis por meio das plataformas digitais.
Vale dizer que a contratação em plataformas digitais gera evidências de contrato eletrônico, ao passo que a locação residencial não exige instrumento com forma definida em lei. Ou seja, sequer é válido o argumento de informalidade ou precariedade do negócio. E ainda que vá se falar em atipicidade do negócio, por quem entende que às contratações em plataformas digitais não se aplica a Lei Inquilinato pela ausência de ânimo de residência do usuário, muito menos há que se falar na aplicação da Lei 11.771/08, que regula a hotelaria, eis que neste caso há inerente prestação de serviços, como se vê em seu artigo 23 a na interpretação do RESP nº 1.734.750/SP do STJ.
Assim, o exercício do direito de propriedade possui envergadura jurídica substancialmente maior do que a pretensão do condomínio de lhe impor restrições. Mais ainda, por óbvio, a mídia da contratação (verbal, escrita no papel ou eletrônica) não tem o condão de mudar a natureza do contrato de locação.
[1] No mesmo sentido, aos condôminos, o artigo 1.335 – São direitos do condômino:
I – usar, fruir e livremente dispor das suas unidades;
II – usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores.
[2] Código Civil. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 1.228, § 2 o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
Enunciado nº 49 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: Interpreta-se restritivamente a regra do art. 1.228, § 2º, do novo Código Civil, em harmonia com o princípio da função social da propriedade e com o disposto no art. 187.
[3] Lei 8.245/91 – Art. 48. Considera – se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.
Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.