Artigo do Sócio Sênior João Emmanuel Cordeiro Lima “O Protocolo de Nagoia e a necessária regulação.” é publicado no Valor Econômico.
O Protocolo de Nagoia e a necessária regulação
A promulgação do tratado ainda é insuficiente para tornar o acordo plenamente operacional no território nacional
Por João Emmanuel Cordeiro Lima
No apagar das luzes de 2023, o Brasil finalmente concluiu o processo de internalização do Protocolo de Nagoia, tratado internacional que tem como finalidade promover a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados.
Desde a adoção da Convenção sobre Diversidade Biológica, o mundo reconheceu que cada país tem soberania sobre os recursos genéticos existentes em seu território, como a molécula extraída de uma planta, podendo estipular normas regendo o consentimento para o seu acesso e assegurando-lhes parte dos benefícios decorrentes de sua utilização – para a fabricação de um medicamento ou de um sabonete, por exemplo. Lastreado nesse fundamento, o Brasil editou o seu primeiro marco legal para tratar de acesso e repartição de benefícios há mais de 20 anos, a Medida Provisória nº 2.186-16/2001. Mais recentemente, aprovou um novo regramento sobre o tema, a Lei nº 13.123/2015. Outros países fizeram o mesmo, casos da Colômbia, Uruguai, Peru, África do Sul, Filipinas e França.
Contudo, verificou-se na prática que as normas nacionais vinham sendo insuficientes para que esse objetivo – de efetivar a repartição de benefícios e o consentimento para o acesso – fosse alcançado. Entre as causas identificadas para essa ineficiência, duas merecem destaque. A primeira era a falta de clareza das normas editadas pelos países provedores para o acesso aos seus recursos, gerando dificuldade e resistência para quem deveria cumpri-las. A segunda era que essas normas somente surtiam efeito dentro do país que as editou, enquanto os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais a eles associados circulavam facilmente e poderiam ser utilizados em outras jurisdições. Logo, mesmo quando os provedores identificavam um acesso irregular fora do seu território, pouco podiam fazer para exigir o seu cumprimento e assegurar a repartição de benefícios justa e equitativa.
Esse cenário levou os países a adotar um acordo internacional que buscasse resolver tais problemas. Foi aí que nasceu o Protocolo de Nagoia. Elaborado após anos de negociação, esse tratado trouxe para os países provedores dos recursos genéticos o dever de proporcionar segurança jurídica, clareza e transparência em suas legislações nacionais de acesso e repartição de benefícios. Em contrapartida, todos se comprometeram a adotar medidas destinadas a assegurar que a utilização de um recurso genético e dos eventuais conhecimentos tradicionais a ele associados, ocorridas em seu território, respeitarão as normas do país de origem – inclusive no que diz respeito à repartição dos benefícios decorrentes dessa utilização. Após a aprovação do tratado, iniciou-se o processo de sua internalização pelos países.
No caso do Brasil, esse processo é complexo e envolve quatro fases: assinatura, aprovação pelo Congresso Nacional, ratificação e publicação do decreto de promulgação. Sobre o Protocolo de Nagoia, a assinatura do texto ocorreu em 2011, mas só foi concluído agora, com a publicação do Decreto Federal nº 11.865/2023. Enquanto isso, entrou em vigor internacionalmente já em 2014 e atores relevantes, como a União Europeia, já avançaram em sua implementação.
A publicação do Decreto Federal nº 11.865/2023 produziu imediatamente três efeitos: a promulgação do tratado; a publicação oficial de seu texto; e sua executoriedade, passando o protocolo a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Contudo, ela ainda é insuficiente para tornar o acordo plenamente operacional no território nacional. Isso porque, apesar de ter fixado obrigações para as partes, em vários momentos o protocolo reservou certa liberdade sobre a forma de sua implementação, cabendo ao Brasil adotar algumas definições internas.
Entre os pontos que precisarão ser objeto de regulamentação, merecem destaque a necessidade de definição, por meio de lei, do dever de cumprimento das normas estrangeiras de acesso e repartição de benefícios para os recursos e conhecimentos utilizados em território nacional. Também devem ser estipuladas as medidas a serem adotadas em caso de descumprimento dessa obrigação geral e os órgãos responsáveis pela sua fiscalização. Além disso, será necessário fixar os órgãos internos que funcionarão como checkpoints, as informações que deverão ser apresentadas nesses locais e o momento e a forma de sua apresentação.
Outro ponto relevante a ser abordado é a definição clara do entendimento do Brasil sobre o escopo material, temporal e geográfico do protocolo, o que envolverá temas como a irretroatividade do tratado, a inclusão de derivativos, o tratamento das informações de sequências digitais e a abrangência da noção de conhecimento tradicional associado.
Muitas dessas definições envolverão escolhas que gerarão consequências diretas para as atividades desenvolvidas por empresas, pesquisadores, comunidades e até mesmo para o poder público. Assim, é fundamental que todos esses atores possam participar e efetivamente contribuir com esse processo para que o resultado seja o melhor possível. Só assim o protocolo poderá se tornar um efetivo instrumento de promoção da conservação da diversidade biológica e de seu uso sustentável, e não um fardo burocrático incompreensível afastado do seu propósito.
João Emmanuel Cordeiro Lima é sócio da Nascimento e Mourão Advogados e professor de Direito Ambiental e Internacional
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Revista Valor Econômico, 27 de fevereiro de 2024, 05h03
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