Publicado artigo do Sócio Sênior João Emmanuel Cordeiro Lima no site Globo Rural sobre ”Proibição de carne cultivada”.
Proibição de carne cultivada: repetiremos Maria, a Louca?
A carne cultivada é resultante de um processo industrial que se inicia com a extração de células de um animal vivo
Por João Emmanuel Cordeiro Lima*
Em 1785, a rainha Maria I, que entrou para a história como “Maria, a Louca”, assinou um alvará proibindo o desenvolvimento da indústria no Brasil. A suposta justificativa para uma medida tão extrema da Metrópole era a necessidade de proteger a lavoura e a exploração mineral, que poderiam se ver carentes de mão-de-obra caso a atividade industrial passasse a atrair os trabalhadores disponíveis – ainda que hoje se saiba que o objetivo real era proteger a indústria portuguesa.
O resultado da medida, que só seria revogada 23 anos depois, com a fuga da família real para o Brasil, foi o atraso do processo de industrialização do País, que somente ganharia corpo quase dois séculos mais tarde. Enquanto isso, o resto do mundo seguiu seu rumo e avançou celeremente no desenvolvimento da sua indústria e na conquista de novos mercados.
Quase 250 anos depois, um projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados (PL 4.616/2023) parece se inspirar no vetusto alvará de 1785 para impedir o desenvolvimento de uma outra atividade: a produção de carne cultivada no Brasil.
De acordo com a proposta, toda atividade de pesquisa, transporte, produção ou comercialização desse bem deve ser proibida, criminalizada e sujeita a penas de reclusão superiores àquelas previstas atualmente para crimes graves como poluição ou estelionato. A justificativa da drástica medida seria a necessidade de proteger a indústria pecuária nacional das ameaças desse novo produto.
A carne cultivada é resultante de um processo industrial que se inicia com a extração de células de um animal vivo, que em seguida são nutridas em laboratório para que se multipliquem em um ambiente controlado.
Posteriormente, esse material é transferido para biorreatores que aceleram o seu processo de multiplicação, gerando o volume necessário para substituir um bife ou uma salsicha convencional. Por fim, o material resultante é moldado/estruturado no formato desejado. Para os defensores da tecnologia, o produto seria uma carne semelhante à convencional.
Entenda o PL 4.616/2023
A apresentação do projeto ocorre justamente no momento em que esse setor, que ainda engatinha, começa a chamar atenção. Seguindo os passos de Singapura, que tinha sido o primeiro país a liberar a comercialização da carne cultivada em 2020, os Estados Unidos também passaram a permitir a venda em 2023. Mas tudo isso ainda ocorre em uma escala muito pequena, apenas em restaurantes especializados.
Ninguém questiona a importância da pecuária brasileira, responsável pela geração de parte significativa da riqueza nacional e por empregar muitas pessoas. Todavia, a proibição proposta é uma medida economicamente tão desastrada para a sua proteção e para o desenvolvimento do país como foi a vedação à industrialização realizada há quase três séculos por Maria I.
Assim como ocorreu naquele caso, o seu único efeito possivelmente será lançar o país no atraso, pois, enquanto nada puder ser feito aqui, o restante do mundo seguirá as suas pesquisas com carne cultivada normalmente.
Não se trata aqui, vale dizer, de se discutir se a carne cultivada é boa ou ruim, ou mesmo qual é a forma mais adequada de se identificar esse tipo produto no mercado e as medidas necessárias para que ele seja produzido de forma segura. A decisão por consumir ou não este tipo de carne naturalmente caberá ao consumidor. Como tudo está no começo, a carne cultivada pode ser um sucesso, fracassar ou simplesmente figurar como mais uma opção ao lado de tantas outras. O mercado é que definirá.
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A forma de identificação do produto é também um tema que pode e deve ser debatido com sobriedade, ouvindo-se todos os atores envolvidos de forma madura e aberta. O mesmo vale para a eventual necessidade de regulamentação da produção para garantir a adequada prevenção de riscos para a saúde humana e a qualidade do produto. A proibição completa, no entanto, interdita até mesmo esses debates.
Como se não bastasse a inconveniência da medida pelos seus potenciais reflexos negativos para o desenvolvimento do País, o texto proposto representa uma ofensa direta à Constituição Federal, que assegura a todos o direito fundamental à livre expressão da atividade científica (art. 5º) e o livre exercício da atividade econômica (art. 170, parágrafo único).
Esses direitos constitucionais somente podem ser objeto de restrição para salvaguardar direitos de mesma estatura. E mesmo nestes casos, eventuais restrições devem ser justificadas e proporcionais, sob pena de tornar letra morta referidas garantias constitucionais. Nada disso está presente em um texto que simplesmente veda e criminaliza o desenvolvimento de uma atividade econômica apenas para supostamente proteger outra.
O texto da proposta está em fase inicial de tramitação na Câmara e a primeira parada é justamente a Comissão de Tecnologia e Inovação, espaço mais do que adequado para que o tema seja debatido de forma madura e técnica. Em seguida, deverá passar pelas comissões da Saúde, Agricultura e Constituição e Justiça.
No fim deste processo, restará aos nossos representantes decidirem se pretendem reeditar o alvará de Maria I em pleno século XXI, eliminando uma atividade promissora enquanto o resto do mundo estuda como aproveitar esta oportunidade, ou pavimentar o caminho para que a indústria nacional possa participar de forma livre e responsável deste processo.
* João Emmanuel Cordeiro Lima, sócio da Nascimento e Mourão Advogados e professor de Direito Ambiental e Internacional
Obs: As ideias e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva de seu autor e não representam, necessariamente, o posicionamento editorial da revista Globo Rural
Revista Globo Rural, 16 de janeiro de 2024, 06h30