Artigo da Sócia Fundadora Alessandra Mourão “Conto para meu cliente que usei IA nos meus trabalhos?” é publicado no Valor Econômico versões online e impressa.
Conto para meu cliente que usei IA nos meus trabalhos?
Enquanto debatemos o valor do resultado dessa colaboração entre o ser humano e máquina, uma coisa é certa: julgadores e clientes merecem saber de antemão da existência dessa parceria
Por Alessandra N. S. F. Mourão
A notícia de que Rie Kudan, a escritora vencedora do Prêmio Akutagawa, o mais importante no Japão, admitiu ter usado ferramenta de inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, em alegadamente 5% de seu romance “Tokyo-to Dojo-to” (Tokyo Sympathy Tower), objeto da condecoração, levantou debates acalorados sobre o valor da obra e os méritos da premiação.
A pergunta do título do artigo surge na mente de muitos que, de alguma maneira, como Rie Kudan, investiram e começam a se utilizar de ferramentas de inteligência artificial na prestação de serviços intelectuais. Os serviços jurídicos não são exceção nesse contexto.
Há mesmo uma expectativa de empresas de porte no sentido de que os escritórios de advocacia que lhe assessoram invistam em inteligência artificial para que o suporte jurídico seja mais ágil e completo. Referimo-nos aqui à inteligência artificial generativa, aquela que cria um resultado novo a partir de uma infinidade de dados existentes na www.
O tema do uso da inteligência artificial na advocacia é quentíssimo mundo afora. Não há conferência jurídica local ou internacional que deixe de incluir o assunto na pauta.
E isso não é à toa, a partir do momento que as máquinas passaram a “aprender” e dispor de uma quantidade fenomenal de dados. E falando em dados, os da MCKinsey Global Institute indicam que a economia global será impactada com a geração de valores entre US$ 2,6 trilhões e US$ 4,4 trilhões como resultado do uso da inteligência artificial generativa.
No outro extremo do espectro, há uma série de relevantes preocupações, igualmente de grandes dimensões, nas quais podemos incluir o aumento da desigualdade competitiva (aqueles que podem investir em IA terão vantagens sensíveis na oferta de seus serviços em relação aos que não têm tais condições); violação dos direitos de terceiros (incluindo propriedade intelectual e direito de autor); proteção de dados e privacidade; e criação falsa de dados (como se viu no evento do advogado americano que apresentou em sua petição uma jurisprudência criada pelo ChatGPT, inexistente, portanto).
Por isso mesmo, há uma movimentação mundial sobre o controle dessa novidade. E instrumentos legais, como a Lei de Inteligência Artificial da União Europeia (EU AI Act), estão sendo debatidos. Aí surge a dúvida sobre regular somente a aplicação ou o próprio desenvolvimento da ferramenta.
A análise de alguns casos mostra que o ser humano rende, em média, 66% mais ao utilizar a inteligência artificial generativa, segundo relatório da consultoria Nielsen Norman, publicada em 2023. O relatório conclui ainda que tarefas mais complexas acabam obtendo ganhos maiores e que os trabalhadores menos qualificados são os que mais se beneficiam ao utilizar IAG.
Mas afinal, o que essa nova ferramenta pode gerar de impacto nas relações entre advogados e seus clientes?
Em primeiro lugar, cabe lembrar que advogados são contratados para produzir intelectualmente em favor dos seus clientes. Nesse mister, devem ser a “inteligência humana generativa” em prol dos interesses de seus contratantes. Por isso mesmo, advogados mais experientes e experts em seu ramo de atuação, quando remunerados pela hora trabalhada, o são em bases mais elevadas que os demais, menos experientes.
Diz o Código de Ética e Disciplina da OAB que as relações entre advogado e cliente se baseiam na confiança recíproca (artigo 10). Sendo assim, quem contrata os serviços jurídicos de uma banca de advocacia confia que o produto final contratado, seja ele uma defesa em juízo ou um parecer, passou por um processo produtivo intelectual que contratante e contratado previamente discutiram e acordaram.
Nessa linha de raciocínio, cliente e advogado negociam se haverá maior ou menor participação de advogados seniores ou juniores, quantas pessoas estarão envolvidas, o prazo de entrega, eventual limite de horas cobráveis (cap), participação de consultores externos ou somente o time da casa etc.
Pois bem. Se parte da defesa ou do parecer for gerada pela inteligência artificial é justo que o cliente seja informado disso. Não no momento da entrega dos trabalhos, mas antes de se dar início à empreitada. O uso dessa ferramenta deve ser discutido e aprovado pelo cliente como corolário da fidúcia que integra a relação das partes.
Até porque a entrada no cenário de mais esse integrante do time jurídico do escritório contratado, mais cedo ou mais tarde, trará à baila discussões econômicas sobre a contratação. Afinal, se o trabalho teve a participação de um chatbot, por exemplo, essa hora trabalhada tem o mesmo valor da hora de um profissional médio? Ou deve ser mais cara para indenizar os investimentos feitos pelo escritório para colocar essa tecnologia à disposição do cliente?
O livro Tokyo Sympathy Tower, de Kudan, é menos merecedor do Prêmio Akutagawa por que é parcialmente apoiado na inteligência artificial generativa? Uma apelação ao Tribunal de Justiça tem menos mérito e valor por que o advogado teve parte da sua redação influenciada ou sugerida pelo ChatGPT? Enquanto debatemos o valor do resultado dessa colaboração entre o ser humano e máquina, uma coisa é certa: julgadores e clientes merecem saber de antemão da existência dessa parceria.
Nota final: nenhum trecho deste artigo foi criado com uso de inteligência artificial generativa.
Alessandra N. S. F. Mourão é fundadora da Nascimento e Mourão Advogados e professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas
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Revista Valor Econômico, 8 de fevereiro de 2024, 05h02